domingo, 18 de dezembro de 2016

Purpurina De Fada Dispersa Pelo Chão

– Você quer revelar o que está velado? – disse ela, flutuando sobre ele.
Descrença – estava cravado em seu rosto. Uma ironia inquietante. Fitando o espelho embaçado notou o seu aspecto cadavérico, suas olheiras remetentes a peles de membros sem circulação; mas se não fazia sentido? Ele tinha olhos, mas eram impotentes. Culpados. Ela parecia indiferente àquela noção, e ainda assim se disponha a sorrir. Ele sorriu de volta, notando as pequenas luzes minguantes que cobriam o seu corpo aquela casca perniciosa.
Uma única luz estava acesa na sala de estar. Quase tropeçou numa garrafa de vodka vazia. Efêmeras insurgências de luzes provenientes de purpurina viam-se por todos os cantos. Sentou-se no sofá e cerrou os olhos, para que não se adaptassem à escuridão e vissem demais, mas foi logo tomado do fluxo ao primeiro som de asas finas batendo.
– Você não tem um momento para mim? – disse ela, suas mãos encontrando as dele, enquanto aquele homem considerava tentar expressar aquelas coisas entaladas no peito. Ela certamente estava aguardando-o se sentir pronto, observadora como era.
Ele aproximou seu corpo dela, discernindo seu rosto luminoso.
– Era tudo tão ... puro. – disse ele, clemente. Cerrou os olhos por um instante. – ... Era? Não sei.
Suas extremamente leves mãos cobriram suas bochechas. 
– Sua luz está presente aqui conosco ainda; sua luz é linda. 
– Minha luz? De que isso importa?
Os olhos do ser se conectaram diretamente com os do homem.
– É uma verdade que você não deveria deixar que permaneça velada.
– Eu suspeito que essa "minha luz" seja simplesmente você.
Ambos não souberam mais o que dizer. Ele deixou-se regar em reminiscências.
No dia em que se conheceram, ela estava lamentando um cadáver ensanguentado de uma fada.
– Nunca se esqueça – dissera ela. O corpo cheirava a orquídeas, mas também emanava um cheiro metálico. – de que seu mundo é composto daquilo que você acredita e do que você vê. Ele é bonito, tudo o que sempre haverá. – Estiveram juntos a tarde toda naquele dia, ela enaltecendo propositadamente em cada movimento suas luzes – foscas e ocultas, consumidoras e evidentes, de forma que se tornaram profundamente pessoais a ele.
Eles nunca foram vistos juntos, mas estiveram juntos, várias e várias vezes. Ou teriam eles notado os seus fulgores? Houvera também aquele dia em que ela o viu com um ferimento grotesco em algum lugar da barriga, que não tratado poderia ter sido fatal.
– Minha nossa... – dissera ela, assustada, ajudando-o a comprimir o sangramento. – Quem te fez isso?
Ele disse nada.
– Como você se feriu?
– Eu...
Ela estava próxima o suficiente para emanar alguma espécie de aura que ele pôde saber que existiu, pois sentiu quando ela condensou e disse a ele: "você pode ser agressivo, se quiser, contanto que você mostre o que você quer". Em sua boca notou um gosto salgado. Pensou consigo mesmo: "isto é uma lágrima". Eles vão para onde querem ir, isso nunca irá mudar. Os olhos viam e o cérebro os dizia o que estavam vendo: outros olhos, seja lá o que instruía estes, tudo no piscar de um momento.
A fada deslizou sua mão pelo seu ventre, e então levantou a sua camisa. Ela encostou seus lábios frescos e sua língua molhada em seu ferimento aberto, chupando-o de forma doce e cadenciada. Uma decisão devidamente tomada envolveria a concepção de uma ficha organizada e bela de se ver: aquilo havia de acontecer pois alguma coisa devesse ir de encontro ao vão que havia entre seus órgãos, músculos e ossos? Que fosse exercido o seu dever civil de ser tratado da forma que for, e quiçá lhe fosse atribuído alguns respingos tenros de santificadas fontes no Universo? Daquelas águas mornas as quais ninguém aparentemente pretendia parar de beber e se banhar? Uma veloz, eventual decisão pensou apenas no imenso prazer daquela língua dançando com o seu sangue e pele rasgada molhando vãos frios. Quando chegou ao orgasmo ao ver purpurina enfeitando o ferimento e quase todo o seu corpo, não havia tese que desprovasse o gozo que sentiu, apenas que complementasse.     
E agora, com tudo isso ecoando de forma previsível, a fada fez um gesto com o dedo e aproximou seu rosto límpido e sem idade ao dele. Ela então deitou sobre seu peito e dormiu quietamente, permitindo tornar-se alheia às outras coisas.


Ele costumava assisti-la além da janela, brincando com os animais e cantando. Sinceros sorrisos foram concebidos ali, pois se todas as coisas bonitas no mundo fossem despojadas, então algumas das coisas que sobrassem tornariam-se o novo padrão de beleza. Uma cortina translúcida, quase transparente, cobria a janela, e ele permanecia lá dentro. Aquele fluxo de energias era difícil de controlar, e o tempo para ele foi paralelo, não disposto. Então esteve lá, uma faca em suas mãos. Ela escorava-se a uma árvore, murmurando alguma coisa aos animais. Houve lágrimas, algumas atravessando seus lábios, encontrando-se distorcidos num sorriso que poderia ter sido irônico ou não.
Quando abriu a porta em solavanco, fazendo esvoaçar toda a purpurina na sala de estar para fora, viu nada além de pombas, cachorros e gatos alvoroçados perto da árvore. E porra, digamos assim, ela deixava um rastro por trás. Todo o arredor e o horizonte além estavam tão abarrotados de purpurina que as coisas só podiam ser identificadas por suas formas distintas. 
Aquela visão era estupidamente patética. 

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