domingo, 7 de agosto de 2016

O Outro Eu

A luz de um poste oscilava além da janela escancarada. Aquilo estava a irritá-lo um bom tanto. Atenção obssessiva por detalhes era alguma forma de característica intrinsecamente pessoal, ainda que fosse fútil reduzi-lo a palavras. A matéria. Sua mente era poderosa e treinada; não necessariamente unida ao cosmos, mas manifestava-se de várias maneiras. Ele era, e como tinha orgulho do quanto aquilo pôde significar!
A abordagem de seus clientes quanto aos vislumbres do estrangeiro veio a ser inalação de ar fresco à verdade, até fatalista, de que a mente e o corpo humano, não necessariamente mantendo-os paralelos a um número indefinido de leis cósmicas, eram filtros defeituosos em que os contatos difusos e não concretos que tínhamos com o que é de fora em grande maioria procederam loucura coletiva e eras de trevas em escalas variadas, e esta sabedoria era uma arma potencialmente muito perigosa. Um poder. Ainda assim, Ele não tinha complexo messiânico, ou interesse em capitalizar sobre tais elementos. Até certo ponto identificava-se altruísmo, logo sendo ofuscado por interesses hedonistas, que estavam entretanto entrelaçados com a sua disposição em participar da pavimentação do futuro. Expirou fumos de cigarro, preocuparo com a juventude dos humanos.
Ele encarou atentamente o Espelho de Asceledial. Cravada, no muito mistificado objeto, a imagem virtual da manifestação física que um ser superior teve a gentileza de lhe presentear. Aquela massa peculiar. Como uma camisa simples, não feia tampouco extravagante, presenteada por um querido, em que fixou-se permanentemente aquela situação quando você se dá conta de que suas peças de roupa estão tocando o seu corpo. Consciência.
Sua transcendência o permitia sentir a entidade superior. Por mais irônico que soasse a Ele hoje em dia, não era ela seu objetivo, e ainda, ofuscando tudo, sua amante clamava-o desesperadamente.
Vinte anos. Vinte anos de fé inconsequente e devoção. Ele agradecia a calorosidade de Jeová, mas não poderia negar a estranheza do fato que humanos utilizassem, como artifício para atingi-lo, um cruzar de mãos solene e palavras em silêncio por éons a fio sem algum avanço significativo.
Para alcançar Jeová, tinha-se de dissociar. Mas um crente ter a ousadia de romper-se da dádiva do Senhor provou-se além de todo o amor que as ovelhas conseguiam cultivar em si. Reconhecia não ser uma ação remotamente apropriada, e Ele sentia a ira de Jeová acoplado à carícia do sentimento ardente do seu khvisajr como uma poesia ultrarromântica. Ainda assim, conhecendo a natureza humana, por que continuam tão alienígenas os meios de se alcançar aquilo que a humanidade mais amou?
O khvisajr era o fundamento de todas as religiões, o alicerce etéreo da humanidade. “O outro habitante”, na língua dos alchatustros. A civilização mística extinguira-se há seis milênios, sorrateira e ousada, e o Espelho de Asceledial era uma relíquia que valia muito mais do que dinheiro.
O Espelho era algo rústico e simples, comparado ao que alguém esperaria de um artefato de místicos – um espelho comum, emoldurado com ossos de algum ser anônimo, pretérito e esquecido. Esse tipo de espelho, de acordo com o conhecimento esotérico proveniente de Alchatustra, era um mecanismo de reflexão e percepção. Não cobria toda a verdade, mas apontava ao caminho certo.
O potencial de encontrar seu khvisajr era inerente a cada um. O primeiro passo era dissociar-se de seu corpo. Ele, já há muitos passos dados neste caminho cósmico, disponha de uma psiquê embutida na plenitude. Era extremamente perturbador; ele podia sentir o calor da lâmpada minguante do poste, o júbilo de um casal sob lençóis, a dor de uma moça abusada... o aconchego dos climas amenos de Bucareste, o frio desesperador do vácuo entre seu lar e a fria fronteira do Universo, e até Jeová, disperso como estava.
Mas quando encontrou seu khvisajr e viu nela amor incondicional, soube que valeu a pena cada ínfimo instante. E era hora, enfim.
– Venha até mim.
Ele murmurou uma prece que instigava coisas pouco compreensíveis neste Universo (ou assim as julgara por pouco as ter estudado?). Um tremor intenso abalou a terra, e sentiu a dor das placas tectônicas sendo feridas. Mais um pouco, pensava Ele, em instantes poderei arcar com a dor de forma mais amena.
No reflexo viu a sua imagem e a dela a ocupar o mesmo espaço. Esta visão aparentemente impossível nas leis conhecidas quase lhe rendeu à loucura, mas Ele foi mais forte. E então, Ela veio.
A carne amorfa da sua amante poderia ser algo horrendo aos olhos comuns, mas Ele sabia que seu outro eu necessitaria de tempo.
– Você é parte de mim – disse. – Agora, tornaremo-nos uma carne.
Ele dissociou e, com seu outro eu, ascendeu. A reação da humanidade à esta grande revelação foi curiosa.

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