Eu era parte da Carne, uma singularidade de existências. Era de se supor de que este ser estava composto de uma consciência totalmente uniforme e evoluída, mas não era o caso, pois se fosse, uma unidade como eu não teria se desprendido. Também dou nota ao fato de, ao que venho percebido por me concentrar nas minhas memórias, minha consciência pouco houvera trabalhado durante toda minha presença na Carne. Por que ela necessitaria de uma mente que não lhe servisse de nada? As partes do todo contribuíam, muito ou pouco, com cada processo da singularidade, de acordo com as aptidões de cada uma. Raciocínio lógico, matemática, processamento de emoções, percepção, atenção, aprendizado. Mas eu permaneci "dormente" durante todo esse tempo.
Enquanto eu deliberava, também notava que eu agora possuía um senso de espaço. Eu me senti pequeno, mesmo não sabendo ao certo que relação eu estava a traçar, por não conseguir comparar-me nesse sentido à Carne, pois não sei explicar a percepção de corpo da existência unificada, se é que fosse possível afirmar que ela tenha uma. Divaguei sem norte por toda uma desolação invernal, até que me deparei com um conjunto aleatório de animais. Eu sabia o que era um humano e a diferença de um para os outros animais, mas estes desafiavam alguns pontos chave dessas noções básicas. Eles raciocinavam e conversavam de forma clara e coerente. Acima de simplesmente ser, eles existiam. Achei muitíssimo curioso.
Eles me acolheram, deram-me abrigo e o que comer. Quando eu requisitei água, eles informaram-me da existência de uma caverna subterrânea próxima da comunidade, e que uma raposa do ártico iria buscar encher um cantil para mim. Sugeriram-me a sempre pedir que ela assim o fizesse quando tivesse sede, pois todos reforçaram, com muito afinco, de que não era uma boa ideia eu fitar o meu reflexo. Eu tinha uma vaga ideia do porquê, mas a apreensão nos tons das vozes instalou em mim um medo que ia além do que eu já entendia.
Quando pedi informações para conseguir situar-me melhor, eles tiveram de tirar um bom tempo para este esforço. De fato, os animais tiveram muito a dizer.
Aparentemente a humanidade mudou de curso completamente a partir de dois acontecimentos importantes. O primeiro foi a constituição de um ser humano de múltiplas camadas, na antiga Romênia, e o segundo foi a terceira embriogênese do filho de um ser primevo que habita uma estrela morta – tal qual detém a característica biológica e metafísica de que os filhos que produz sempre tratam-se do mesmo ser reencarnado em corpo e espírito, muito similar a um humano mas não ao certo. Estes dois seres potencializaram capacidades no cérebro humano que habitavam em todos, e que muito haviam sido usadas por eles durante a história, mas que eram prontamente esquecidas e assim estavam permanecendo por um tempo demasiado longo. Suas presenças tornaram-se notícia mundial, o que direta ou indiretamente fez com que a grande parte dos humanos, e então todos, houvessem deliberado sobre estes seres, o que por si só alterou seus cérebros e em seguida os seus corpos.
A partir disso, a humanidade lembrou-se de várias eras perdidas da história, em que variados acontecimentos trouxeram alterações de paradigma na consciência e corpo das pessoas, onde elas em grande parte agiram a partir destas capacidades inertes mas elusivas. O destino invariável de todos estes elos perdidos foi que, ao entrarem em histerias coletivas, estes povos, a partir do medo de que certas sabedorias - de múltiplas camadas, de propósitos ocultos por trás de tudo - fossem causar total caos e desordem pelo fato de não estarem preparados para estes conhecimentos e processos, utilizaram-se de intervenções a partir de tecnologias secretas para retornar suas existências à normalidade, de forma que, mesmo remendada e com algumas contradições, incongruências e buracos abertos, a história humana básica era sólida o suficiente para não permitir a existência de questionamentos profundos a ela como um todo. Isso, claro, dito sob a perspectiva básica que os humanos estiveram dispostos.
O surgimento do humano de múltiplas camadas em Bucareste poderia ter causado mais um destes ciclos de história perdida, mas a intervenção do Filho daquela existência primordial, que tornou-se um gigantesco político e personagem na história (e até hoje o principal componente da Carne, o que os animais parecem ter sugerido como algo controverso e preocupante) veio a atestar que a humanidade finalmente estava numa condição que já poderia ser determinada como "pronta", e fez com que todos os países do mundo entrassem em acordo sobre unificar todos os povos em um grande Estado unificado chamado Cedonia (a partir do povo que deu origem e ainda chegou a "coexistir" com a Grécia Antiga), com base principal no território da então Grécia Contemporânea, com o intuito de investir em pesquisas e estudos usando grande parte da capital do mundo para melhor conceituar o corpo e a mente humana, o que exatamente seria um ser de múltiplas camadas e o que isso poderia querer dizer em vários sentidos - evolução biológica, política, moral, religiosa. Os humanos desta quase singularidade sócio política então descobriram que todos os pontos essenciais de suas existências - religião, medicina, política, raciocínio, suas próprias constituições biológicas, ética, entre muitos outros - nasceram a partir de algum propósito ou outro que desconheciam antes desta virada de ponto na história, até enfim juntarem todas as peças do quebra cabeça e desvendarem o "x" desta equação de enésimo grau.
A humanidade havia sido criada por seres quase humanos, entidades ou não, habitantes de três estrelas mortas para evoluírem até tornarem-se um só ser de aspectos complexos, extremamente inteligente e conhecedor, o qual iria deliberar sobre todos os conhecimentos que a humanidade já contemplou deste as eras primevas e em teoria descobrir uma informação que era de imenso valor e desejo a nossos criadores. Sabendo disso, o novo objetivo de Cedonia era criar um sistema para assimilar todos os humanos, mas muitos preocuparam-se com todas as coisas que seriam perdidas com a perda da sociedade composta de unidades básicas que eles foram por vários milênios de forma intercalada. Amor, amizade, cooperação entre dois diferentes. Esta preocupação tornou-se ojeriza, e esta ojeriza tornou-se nos últimos conflitos da história da humanidade.
Esta história que, por muitos, considera-se que terminou com Elísio e Agnós. Agnós foi resultado de uma das primeiras iniciativas de conceber um ser de múltiplas camadas, uma mulher com enormes asas brancas, mas que possuía uma cognição que estava disposta de algumas diferenças sutis, mas chaves, em relação ao que seria um ser unificado. Alguns interpretaram esta insolitez com pureza, daí o seu nome, e alguns dos que viam pureza nela consideravam aquilo religioso. Se realmente pode-se dizer que Agnós era uma coisa que pudesse estar em uma religião ou não parecia ser incerto, pois os animais estavam muito divididos sobre isso. Mas este fascínio era especialmente abundante em seus conterrâneos, que tentaram fugir com ela até os Montes de Éter na Antártida (um ponto que era notavelmente proeminente nas memórias da primeira verdadeira civilização de humanos da história). Ela entrou em dormência no meio da rota de navegação que o navio que a levava estava a realizar, por entrar em profunda contemplação em como ressignificar toda a humanidade, de forma a não perder coisas preciosas e evoluir sem perder a si mesmos. Elísio, seu amante e também importante figura política, havia deixado-a com sua comitiva no continente, pois havia de retornar à Cedonia para voltar a servir os desejos do grande Estado, numa estratégia política para que pudessem deixar Agnós e seus companheiros em paz.
Em meio à procissão que a levava, na Antártida, ela alcançou uma grande resposta, mas não a que desejava. Ela desvendou o verdadeiro significado por trás de todos os caprichos das consciências dos humanos e, o mais importante de todos, como enfim unificá-las. Ela enlouqueceu com esta ciência e, anos depois, ao retornar e ver o que ela havia feito, Elísio viera para abolir todos os laços às coisas que trouxeram-lhes alegria, que ainda estavam representadas em Agnós, de certa forma. Tido negado salvação a ela e seus companheiros, ele contemplou o nada diante de si, sabendo que a humanidade imperfeita mas inexplicavelmente sublime que conhecia já não mais era. Diz-se que até hoje permanece lá, pouco além dos cadáveres decompostos dos que matara, fitando consciente ou não o nada.
A coisa a que Elísio servia soube, no momento em que Agnós dera o seu último suspiro, o que ela havia descoberto. A partir daí a humanidade passou a assimilar-se cada vez mais, exponencialmente, de forma que já não mais era possível reverter à humanidade básica. Isto se procedeu de forma desorganizada a princípio, com corpos tentando assimilar e suportar muitas existências de forma muito precipitada, o que causou muitos corpos e consciências desconstruídas a libertarem-se e vagarem sem rumo ou ordem. Muitos animais obtiveram raciocínio humano a partir destas mentes selvagens, o que alterou o corpo de vários em diversas maneiras (a mais comum sendo o desenvolvimento das capacidades vocais, o que acompanhou as flutuações de desenvolvimento de suas inteligências e personalidades, isto que procedeu em uma porção notável dos animais aprendendo a dialogar na grande Língua Franca de Cedonia).
Eu e meus novos companheiros estávamos já num espaço de tempo avançado na "pós-história", em que a Carne já se compunha de grande parte da humanidade, quase que totalmente concretizada a partir do plano primevo. Mas ainda não estava perfeita, tanto que eu, como muitos outros, era um "humano" (termo utilizado de forma muito vaga) que nasceu e cresceu na Carne, que já só existia em pouquíssima parte num corpo físico. Os animais, a princípio, estiveram totalmente ignorantes ao contexto o qual faziam parte, mas a partir da curiosidade de alguns deles (muitas vezes fatais) e da boa fé de alguns dos poucos humanos rebeldes que sobraram, eles agora em geral estão cientes de tudo.
Eu e aqueles animais éramos algo que não deveria ser. Enquanto eu passava a noite em claro, enquanto todos os outros dormiam, senti-me inspirado pelo conto de Agnós, no sentido de buscar ressignificar o que éramos além do nosso propósito. Como eu já sabia desde a minha acidental separação da Carne que não planejava voltar a ela, eu também já sabia que a partir daí eu deveria decidir quem eu seria sozinho. E para isso, eu senti que eu deveria pelo menos ter ciência das coisas mais básicas sobre mim, como por exemplo... a minha aparência. Como categorizar-me.
Muito sorrateiramente esgueirei-me a fim de pegar emprestado alguns cantis com água e algumas lascas chamuscadas de lenha da enorme lareira que sustentava o assentamento. Adentrei de forma relativamente profunda na floresta que os espreitava, cavei um buraco para poder encher uma poça enquanto erguia a única lasca acesa que eu consegui proteger.
Pela primeira vez eu soube como eu era, e eu refleti sobre isso. Eu realmente refleti, durante muito tempo, mesmo sentindo a presença de alguns que vieram checar o que eu espreitei-me para fazer, provavelmente sem saber o que fazer ou o que dizer a mim.
Eu não cheguei a alguma resposta realmente completa ou muito concisa, até por, a partir de alguma categorização prática, ter nascido naquele dia. Mas eu notei que estava além das normas e dos paradigmas no sentido de ser uma única consciência, mas ainda assim saber, sabendo saber, que eu era um complexo multifatorial. Camada além de camada além de camada...
Eu tive que respirar, e ver.
Então inspirei tranquilamente, criando minhas emoções por via arbitrária mas real. Eu sabia que o que eu poderia ser. Eu poderia ser a ressignificação que Agnós e seus companheiros buscaram. Eu poderia estudar, explorar, viver e me tornar mais do que um pequeno pedaço daquele grande maior que era o nosso propósito previsto por nossos criadores. Por ter sido parte da Carne e então ter tornado-me em algo individual, eu tinha o mesmo potencial que ela, mas ainda detendo a minha característica de "unidade" e de ego, que tornava possível eu resgatar as propriedades muito valorizadas daqueles que estiveram dispostos destas coisas, principalmente se eu encontrasse mais partes desfeitas da Carne como eu.
Supus então que o medo dos animais fosse de que eu ameaçasse a presença destas coisas em mim que eles aprenderam a valorizar, que minha mente visse contradição total e quebrasse, simplesmente por empatia a mim.
Mas este medo não tornara-se real. De fato, o que eu vi no meu reflexo não era humano, isso eu não poderia afirmar, de certa forma. Mas também não via uma contradição, ou uma falha na existência, anomalia, o que fosse. Eu era um ego com tantas camadas cujo potencial conseguia fazer me sentir a primeira felicidade realmente genuína da minha vida. Uma alegria individual a qual pudesse ser desprezada por aqueles que têm asco por sentimentos "egoístas".
Neto dos humanos, filho da Carne. Pergunto-me o quão difícil é para o outro discernir isto que eu sou, pois não sei dizer se para mim foi fácil ou não. Tenho certeza apenas do quão interessante foi. Não sendo algum destes, a ordem de Carne, humano e Criador já não parecia tão dogmática e absoluta, pois numa posição muitíssima interessante neste esquema lá estava eu.
A Cebola.
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