– Você quer revelar o que está velado? – disse a raposa do ártico, cruzando um pessegueiro morto.
– Quero carne de rena. – respondeu o lobo, tentando discernir as coisas na luz ofuscada. Desceu o barranco. – Não esses seus presságios. – se depararam com uma nevasca insurgindo. O crepúsculo engolia o reino. Seu pelo sofria cócegas com o ir e vir de ventos desordenados, mas nada que se provasse muito incômodo.
– É uma pergunta mais complicada do que parece.
Sua alcateia não era das mais misericordiosas, um produto compreensível do inverno que nunca dá adeus. As fadas espectrais espreitavam pelo horizonte, envolvendo aquelas terras do dia depois, como de costume quietas em suas vigias solenes. Era provável que brevemente já estivesse a ser dado por morto e abandonado, e sequer ouviria, se houvessem, os uivos ululantes retumbando em seu nome, mas a auspiciosa raposinha praticava o canto dos lobos, o que já era bom o suficiente para preencher os silêncios que se encontrariam além.
– Você tem esperanças de ser reconhecido como alfa? – disse ela. – Ou sentir como se fosse um. O "um" entre "vários". Por isso você aceitou? – A Fronteira estava tão lúgubre quanto de costume, aquela planície branca que se estendia indefinidamente. Suas luzes surgiam e esvaneciam de forma aleatória pelos ares.
– Não. Não quero ser um alfa. Se eu retornar, entendo que se instalaria certa admiração por mim, mas não seria justo. Por que teria eu de comandar, um cantorzinho rotundeiro, apenas pois estaria eu retornando com segredos de uma "aventura"?
– Ser "um" engloba muito mais, mas acho que você está percebendo a maleabilidade de nossa alma... Nós temos um ao outro. Fantasias muito extravagantes não devem importar.
– Exatamente. – respondeu o lobo, com um aconchego em seu coração. – Eu aceitei por um sentimento que não consigo explicar... É como se fosse uma curiosidade. Não sei.
Uma das fadas espectrais sorriu, sentindo a proeminência daquele calor. Ela, ser alto e bípede – pele alva, translúcida e nua, e maravilhosa de sua forma, jamais permitia que seus pés tocassem o solo, como amantes separados.
– O que será que as trouxe aqui? E irão para algum outro lugar, não é? Está no destino. – disse a raposa.
– Veja-as. Elas estão sorrindo... Muita coisa pode tê-las trazido aqui, mas este é o "irão".
Muitas luzes resplandeceram em simultâneo.
– Aqui.
Miríades de monólitos erguiam-se em padrão ordenado e uniforme, mas ainda assim a visão era ainda mais desolada que as anteriores no seu reino.
– Bom, isso é... – disse o lobo.
A raposa riu.
– Vamos pular adentro. – Sua companheira seguiu em frente, veloz e destemida.
Eram monólitos retangulares feitos de aço e rocha, alguns altos como colinas e outros desafiando montes em estatura, e todos estavam repletos de reentrâncias quadráticas por todas as suas superfícies. Algo como aquilo não era conhecido pela alcateia.
Sob a neve gradualmente revelou-se um solo composto de uma espécie de substância negra e sólida. Era mais quente, e via-se nestes caminhos entre as construções. O lobo e a raposa enveredaram e vislumbraram. As formas que os caminhos, sinalizados por retângulos e faixas brancas e amarelas, e as rochas sofisticadamente erguidas tomavam eram algo de além da fantasia.
– O que será este lugar? – disse o lobo.
A raposa, atenta e imersa, não tentou especular. Após algum tempo desviou-se do caminho negro e dirigiu-se a uma das construções.
– Vamos dar uma olhada. – fez sua escolha a esmo. Alguns pareciam mais velhos e ruídos que os outros, mas, desconsiderando o tamanho, parecia não haver muitas diferenças entre os monólitos. O lobo pensou se isso na verdade teria haver com um sistema de hierarquização similar ao que as alcateias possuíam.
Parecia maior no interior, e o chão em padrão losangular era um retorno ao frio. Formações estrangeiras brotavam das paredes, algumas constituídas de materiais estranhos, seja lá quais fossem os seus propósitos, pois pareciam perfeitas demais para construções da natureza, e nenhum povo fazia coisas como aquelas. A raposa atravessou a sala até a extremidade no lado direito, onde dois enormes vãos subiam e desciam indefinidamente.
– O quê... – Ela inclinou o focinho para frente, suspeita. Sua pata escorregou no solo e, sem equilíbrio, pendeu à escuridão por alguns centímetros. Ela gritou, assustada, e o lobo tomou-a em suas presas e arrastou-se para trás, temeroso. Pensou ter ouvido algo emitir algum ruído estridente no fundo daquela fenda enquanto isso. Aquilo fez com que toda a sua confusão se tornasse ainda mais dolorida do que já estava a ser.
– Cautela é uma virtude nobre, caso você tenha esquecido. – disse.
– As fadas... Elas têm noções que estão além de nós.
– No que exatamente será que elas têm haver com este lugar? – O lobo cruzou construções de alguma espécie de rocha que portavam arbustos mortos. – Elas construíram tudo isso?
– Elas sequer têm algo haver? – disse a raposa, caminhando brevemente em direção à entrada, onde podia-se ver flocos de neve pairando com o vento. – Elas assistem o lugar, mas como podemos saber?
– Elas têm. Eu sei, pois o nosso alfa nos disse que a carne das fadas era uma de juíz, carrasco e amante dos mundos-a-serem. Elas nos separam deste lugar, e são os únicos seres que conheço que poderiam ser responsáveis por tais forjas.
O lobo então ergueu o focinho, farejando, trazendo-se mais próximo de algo. Um receio começou a aflorar dentro de si, e pensou estar sendo tomado pela confusão, mas... um cheiro...
– Bom, isto posso lhes esclarecer – O lobo e a raposa voltaram a atenção ao emissor da voz. Uma figura similar às fadas espectrais surgiu além da entrada, velada em tecidos negros. Era sólida, contudo, e seus passos eram muito ruidosos. – Mas diria que é melhor que eu não o faça.
A raposa recuou para trás do lobo, que expôs suas presas, rosnando. Figuras similares surgiram então.
A figura gesticulou para seus companheiros.
– A focinheira.
Um deles cheirava mal, em contraste à pele rosa despelada. Outro parecia ser uma versão menor e peluda dos maiores e cheirava tão mal quanto. O que o impressionou foi ver vários de sua raça.
– Rolf... – ganiu a raposa, aconchegada nele.
– Ficará tudo bem. – disse ele. – É o que eles disseram. Não machuracão você.
O lobo não tinha certeza, mas não queria que ela também não tivesse, mesmo que isso fosse tolo e não fosse durar.
– Parece que é tempo... – disse o rosa, atrás das barras de ferro do outro lado.
– Você acha? – disse um dos lobos.
Levou algum tempo até que uma das fadas em corpo surgisse e abrisse a grade. A raposa assentiu, hesitante, e então ela e Rolf seguiram seus rumos que foram definidos por elas.
Se era um salão estranho, isto era um fato incontestável. Estava há alguns metros do nível do solo. O chão era inclinado e as paredes retorcidas e negras; lances de rochas retangulares esculpidas em sucessão seguiam por ambos lados na extremidade, e o capturador sentava-se sobre uma rocha esmeradamente moldada.
Ele removeu os mantos negros, revelando seu corpo alvo e sólido, coberto de um tecido branco e quase translúcido, e alastrou asas sem penas. Seu rosto era belo; uma beleza a qual o lobo jamais pôde e provavelmente jamais deveria ter conhecido.
– Saudações. – disse ele. – Sou Illuminel, Aquele das Proclamações.
A raposa deu passos à frente.
– Você é uma das fadas?
– Fadas? – disse Illuminel, rindo. – A sapiência dos animais é tão fantasiosa quanto a nossa sempre houvera sido. Sim, minha querida... fadas. Somos aqueles que as precedem, se é que posso determinar uma ligação a partir de pontos. Quiçá seja arrogância a sugestão desta linha de pensamento.
Rolf sentiu então todas as perguntas sem respostas perdurantes nadarem na sua constituição, e era como se fosse um oco ambulante.
– Não sei o que deu a vocês estas dádivas – continuou ele. – mas sei o que manifestou as negações da essência da existência, e suspeito que sejam no mínimo similares. – o corpo dele se retorceu de forma asquerosa, por algum movimento de seus órgãos.
– Illuminel? Lamento a interrupção; na verdade a justifico sob a importância de lembrá-lo com celeridade sobre o quanto nos atentamos à nossa urgência destas metamorfoses de cursos naturais. Nós também odiamos esta contradição. É da nossa natureza. De centímetros a quilômetros; de dois segundos a dois milênios de sua presença eu poderia sentir esta... deficiência. – disse uma. Parecia ser, Rolf inferia, que era uma fêmea do que eles eram, e Illuminel um macho. Trajava mantos negros como os outros. – Você está num estado que merece nota.
O lobo recuou, assustado. A raposa foi para trás dele.
– Parecem tanto conosco. – disse Aquele das Proclamações. – Não que seja correto eu dizer isso. Por muito tempo fomos os únicos detentores de sabedoria, mas já não é o caso. Não há um único detalhe na atualidade que não sugira à evolução dos tecidos. Das sinapses. Das Cordas.
– O que trouxe isso? – disse a raposa.
– O que trouxe o inverno?
Não houve resposta.
– Somos um. Cada um de nós que porta isso. E todos nós aguardamos. É hora de unir estas unidades e torná-las verdadeiramente palpáveis. Só então poderemos nos tornar em um corpo digno de "apocalipse".
Os outros ergueram-se.
– Juntem todos os outros.
– Pelo menos consegui o que eu queria, não é? – disse o lobo.
– Mas... – retrucou a raposa.
– Mal sei do que se trata, mas é acolhedor pensar. Não sei o porquê. E ei... – ele esfregou seu focinho em seus pelos alvos. – Saber que estaremos juntos até o fim me faz sentir como o "um" entre "vários". Obrigado.
Foram levados a uma sala inteiramente branca. Illuminel apresentava-se no centro, vermelho de sangue, mastigando algo. Ao seu redor espalhavam-se grotescos restos. Ele brincava com o líquido, pintando padrões macabros no chão de maneira ritualística e obscena.
Quando foram postados a seu mercê e deixados sozinhos, a figura iluminada fez uma pergunta:
– Quem é você?
– Eu sou. – responderam a raposa e o lobo simultaneamente.
Illuminel tentou sorrir, seu rosto bagunçado e úmido de sangue, bile e suor. Um ruído peculiar foi ouvido à distância. Ele tomou a raposa nos braços.
O lobo nortenho e a raposa do ártico se entreolharam uma última vez. Seu sangue foi a última coisa que o lobo se permitiu ver, antes de tornar-se parte da Carne, um aspecto de algo maior.
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